quarta-feira, 24 de junho de 2009

OS VIAJANTES SECRETOS PARTE I



A seguir colocarei uma parte do romance que escrevo, intitulado "O CAVALEIRO DA AURORA - As crônicas de Arthus Donovan"...
Trata-se do primeiro capítulo, quando Lilnen e Serin, os viajantes secretos, chegam na terras polares de Valsegaard. No fim colocarei um glossário com os termos diferentes e o respectivo significado! Deleitem-se... é apenas uma prévia do primeiro volume de uma trilogia...


OS VIAJANTES SECRETOS
PARTE I


Vestes de peles grossas tremulavam com os ventos dos desertos polares de Valsegaard. Dois bárbaros postados em um monte fitavam a paisagem há algumas horas, como se enxergassem além daquele horizonte branco e sem vida.
– Sinto o vento a trazer mudanças do sul meu filho. Algo muito terrível está para acontecer. – disse o mais velho deles, que usava um capuz feito com a cabeça de um lobo branco. O filho apenas acenou com a cabeça.
- Algo muito terrível. – ele repetiu em voz baixa, mais para si mesmo do que para seu jovem ouvinte, e retomaram a caminhada de volta...


Um mar bravio. Fortes ondas se chocavam contra o navio como se o próprio Várgan o flagelasse. O vento frio açoitava tudo sobre as águas do Oceano do Norte, obrigando os tripulantes a se encolherem dentro dos grossos gibões. Por dois dias a tempestade atormentava a região, dois longos dias em que Lilnen permanecera enfurnarda entre os barris de carga. Ainda que ferida em razão dos solavancos da embarcação, estava feliz por ter deixado em segurança o porto de Gelendral, rumo às terras polares de Valsegaard. A ventania denunciava que estavam alcançando a costa, pois aquela já lhe cortava os ossos há algum tempo. Na solidão dos últimos dias de viagem tentara imaginar como era o mar ou a paisagem daquelas terras, pois desde quando entrara sorrateiramente na sala de cargas, oito dias antes, não saíra para nada.

Olhou dentro da mochila, que estava rija devido à temperatura. Apenas migalhas de uma ração que comprara em Gelendral sobraram enroladas no pano, que já cheirava mal. A fome incomodava bastante e ela, sem idéia de quanto tempo ainda levaria para chegar a algum porto, resolveu arriscar-se no compartimento de carga em busca de algo para aliviar o vazio na barriga.

Após deixar seu canto escuro, tocava cada um dos barris esperando encontrar um sinal a respeito do que guardavam. Placas velhas de madeira diferenciavam os recipientes, que após várias raspagens para apagar os antigos entalhes já se mostravam gastas e revelando, para a infelicidade da menina, sinais de que continham bebidas como vinho ou rum. Ao passar para o outro lado da sala de cargas, separada por paredes de lenha escura, encontrou barris menores, mas que ainda aparentavam um peso considerável. Estes eram segurados por cordas e anteparos de madeira, o que fez a jovem supor que algo mais valioso que bebidas alcoólicas neles estava retido.


Lilnen

Alguém naquele mesmo momento pensara o mesmo que Lilnen, e assim como ela estava a averigüar os barris. Um barulho súbito por ela foi ouvido, vindo de uma aglomeração de tonéis, e uma gota de suor tão fria quanto o vento que lá fora empurrava as velas da embarcação lhe desceu pela fronte. O som era constante e bastante audível, e aquele que o fazia resmungava consigo mesmo com uma voz estridente, como se não conseguisse alcançar algo. Hesitante, respirou várias vezes e resolveu dar a volta no amontoado para espiar o causador de tanto barulho.

Ao se aproximar o barco repentinamente balançou com violência, jogando-a contra uma parede enquanto um barulho muito alto de colisão pôde ser ouvido. Lilnen bateu com a cabeça e de pronto sua visão embaçou por alguns segundos. Ao se recompor viu que grande parte das cargas havia se soltado das cordas e até mesmo quebrado os anteparos. Havia comida e grãos espalhados por todos os cantos, e o balançar da nau ajudava para que ficassem ainda mais.

A menina imaginou que toda aquela balbúrdia pudera ser ouvida nos compartimentos ao redor da sala de cargas, mas o contínuo descontrole da embarcação lhe daria algum tempo para recolher algo para comer e voltar para o canto escuro entre os tonéis de bebidas. Enquanto remexia os recipientes abertos, entre rações, carne seca e frutas, ouviu um gemido de dor e se lembrou daquele que resmungava antes do choque com as ondas. Passo a passo se aproximou hesitante da origem do som, pois ali poderia estar um marinheiro que a entregaria assim que a oportunidade surgisse. Apesar do risco, sua bondade e sensibilidade falaram mais alto.


Serin, o iunar


Lilnen não esperava encontrar aquele tipo de ser em um barco, pois os olhos amarelos e de pupilas fendidas não lhe enganavam. Era um iunar, que se assustou ao ver que sua presença havia sido descoberta.

- Eu faço o que você quiser menina! Por favor, não chame ninguém, eu tenho muitos ýrgs no meu quarto, eu lhe pago o quanto quiser se me tirar daqui! – ele disse com uma voz estridente e olhos arregalados de tanto medo. Quando pronunciou a primeira palavra em resposta subitamente o olhar do iunar mudou, e suas feições se tranqüilizaram. De alguma forma misteriosa o felino sentiu que poderia confiar naquela menina, principalmente após ouvir o que tinha a dizer.

- Não se preocupe, vou tirá-lo daí. E eu não quero o seu dinheiro, você deve guardá-lo para comprar comida quando alcançarmos a costa. Assim, não precisará mais ficar espiando e mexendo na carga dos outros. – ela disse com um sorriso no rosto.

Ao tentar empurrar o barril percebeu que nem mesmo um dos robustos marujos de Gelendral conseguiria removê-lo sozinho. O navio continuava balançando, e a cauda do iunar poderia ser ainda mais esmagada se não agisse rápido. Ao observer toda a comida no chão teve uma idéia quando viu um dos barris vazios ser movido pelo balançar provocado pelas ondas. A tampa daquele que prendia a cauda já havia sido removida, e assim, Lilnen teve apenas o trabalho de tirar a comida do interior até que ficasse leve e pudesse ser deslocado.

- Como você se chama? – ela perguntou ao ver o hákan alisar a cauda tentando inutilmente aliviar a dor.

- M... Meu nome é Serin. – ele respondeu sem olhar para a garota.

- Me chamo Lilnen, e assim como você também estava à procura de algo para comer. Mas parece que chegou primeiro. - ela disse olhando para a cintura do resmungador, que revelava um punhal. Sem perceber que o barco havia parado de balançar Lilnen ensaiou uma terceira pergunta, mas foi interrompida por uma reação brusca do novo conhecido. Com um salto rápido ele a agarrou pelo braço esquerdo e levou para a sala onde permaneciam as outras cargas, procurando um lugar para se esconderem.

Antes de perguntar o que tinha em mente, a respeito do motivo daquela reação, Lilnen ouviu a porta ranger e iluminar a sala em que estavam, expondo dois vultos portando tochas. Para a sorte de ambos os marinheiros constataram que a carga estava daquela maneira devido aos fortes solavancos provocados pelas ondas, afastando qualquer possibilidade de desconfiança a respeito de tripulantes clandestinos. Enquanto os marinheiros subiram gritando por alguém para limpar a bagunça eles aproveitaram para recolher o máximo de comida que podiam. A sala de barris de bebidas não foi afetada, e isto ajudaria para que pudessem permanecer por lá até o fim da viagem. Os momentos durante a limpeza da sala de cargas pareciam eternos, e a cada aproximação de um embarcadiço eles retesavam os músculos com medo de qualquer descoberta. Nenhuma palavra foi proferida durante horas...

Ao que parecia já era noite quando o navio alcançou a costa, pois os pequenos feixes de luz que passavam através das frestas já haviam sumido. Isto era importante para os furtivos viajantes, pois poderiam ter problemas para deixar a embarcação sem serem vistos sob a luz do dia. Serin amarrou duas tiras de pano no rosto, deixando apenas os olhos visíveis e escondendo a sua condição de hákan. Com cuidado abriu sorrateiramente a porta da sala de cargas, espiando no corredor para saber se o caminho estava livre para a fuga da embarcação. Muitas vozes podiam ser ouvidas vindo do convés, e sua audição apurada de iunar permitia que até mesmo distingüisse algumas palavras, geralmente referentes a ordens de recolhimento das velas e de transporte das cargas.

Serin ouviu também passos pesados vindo para a direção da sala de cargas, que se tornavam mais altos a cada segundo. Pensando rápido, se lembrou de uma janela bem perto dali, pela qual havia entrado antes de mexer nos barris. Poderia facilmente seguir até a janela e escapar, sem se preocupar com Lilnen, que o esperava no canto da sala de cargas. Em condições normais o iunar o faria, mas uma compulsão estranha o fez vacilar e retornar para buscá-la.

Isto foi suficiente para que os passos alcançassem a sala de armazenamento. - Vamos, Lilnen, vamos logo. Eu encontrei um jeito de sair, mas vamos ter que passar escondidos por quem quer que esteja entrando aqui. – ele disse, afoito. Seus olhos percorriam o caminho até a porta, assustados e tentando enxergar exatamente as características de quem havia entrado. Segurando o braço da companheira caminhou furtivamente, com leveza e calma para não fazer qualquer barulho.

Durante a breve caminhada Serin pegou pelo caminho um pedaço de madeira que provavelmente havia se soltado de um dos barris. Após fazê-lo, cochichou baixo no ouvido de Lilnen enquanto observava o homem que averigüava os barris: - Vamos esperar que ele saia da direção da porta. Quando for conferir os barris do fundo eu tento distraí-lo enquanto você passa e me espera na porta. – um acenou com a cabeça foi sua única reação, pois estava assustada e temendo que o marujo descobrisse seu novo amigo.

Serin caminhou furtivamente de encontro ao homem, carregando na mão direita a pesada tira de madeira que seria utilizada para desacordá-lo. Enquanto isso, Lilnen passava entre os barris próximos da porta, tentando ao mesmo tempo observar o fundo para verificar se o hákan obteria êxito.

Enquanto Serin se aproximava vagarosamente o humano, de súbito, se virou para trás, percebendo que alguém estava ali para apunhalá-lo pela retaguarda...




GLOSSÁRIO

Gelendral - cidade portuária das terras livres de Melnor, a única ligação via mar com as terras frias de Valsegaard.
Hákan - a raça dos selvagens, que foram afetados pelo poder dos deuses no despertar e se mesclaram aos animais, adquirindo aparência e características semelhantes às dos mesmos. Se divide em vários segmentos, entre eles os iunars, por exemplo.
Iunar - subraça de hákans, ligada aos gatos. São geralmente pequenos, ágeis e esguios.
Laerth - o nome do planeta sobre o qual fica Rháurian, o continente onde se dão as histórias.
Melnor - extensa região formada por cidades-estado no norte de Rháurian.
Rháurian - o continente sobre o qual as crônicas das Terras Lendárias acontecem.
Valsegaard - região do extremo norte de Rháurian, de clima geralmente polar durante quase todo o ano.
Várgan - o deus dos mares e oceanos do panteão de Laerth, geralmente venerado pelos navegadores e habitantes de regiões portuárias, conhecido por ser implacável com aqueles que não lhe prestam oferendas.
Ýrgs - nome dado à moeda padrão que circula em quase todo o continente.

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