quinta-feira, 25 de junho de 2009

OS VIAJANTES SECRETOS PARTE II



Continuemos com as aventuras de Lilnen e Serin em Valsegaard. No último post vimos que ambos tentavam deixar o navio, mas encontraram um pequeno problema na sala de cargas. Um marujo de súbito chegou para averigüar o que havia ocorrido com os barris após a tempestade e Serin resolveu tentar desacordá-lo, atacando furtivamente com um pedaço de madeira. No entanto, ao se aproximar, o iunar teve uma desagradável surpresa. O marujo se virou, por sorte, percebendo a sua presença...


OS VIAJANTES SECRETOS PARTE II


Contudo, já era tarde, e assim que uma expressão de surpresa se formou na face do marujo, foi logo desfacelada por um golpe com a tira de madeira, que provocou um som de algo se partindo. Cambaleando para trás ele dava sinais de que iria cair, provavelmente desacordado, mas retomou o equilíbrio e se voltou contra seu agressor, proferindo injúrias e tentando agarrá-lo pelo pescoço. Serin pensou rápido e sacou com uma destreza assustadora seu punhal, golpeando o pescoço do robusto sujeito quando suas mãos calejadas estavam por tocá-lo. Com um gemido discreto ele caiu no chão, e tão rapidamente quanto o golpe que dera cabo do moribundo Serin pegou sua arma e voltou o olhar para a porta.

Lilnen não pôde ver o que aconteceu com exatidão, mas após uma olhadela mais forçada exprimiu felicidade ao ver o amigo são e salvo. Escondendo a faca novamente na cintura ele olhou para o corredor, e tomando a menina pelo braço correu para a janela através da qual fugiriam, como planejado.



As terras de Valsegaard no período de inverno, que é sempre rigoroso


A janela era redonda e grande o suficiente para que passassem, e estava bem próxima da água. Dela eles avistavam as trevas contornadas por estrelas, em um céu diferente daquele com o qual estavam acostumados. Lúnarin, a imensa lua que reinava no firmamento dos descampados do sul, não os presenteara naquela noite com seu brilho fosco. Serin abriu a janela com cautela e olhou para a água do mar hesitante, refletindo acerca de sua temperatura, que parecia estar bem baixa a julgar pelos flocos brancos que voavam aleatoriamente pelo ar. Lilnen olhava aflita para ambos os lados do corredor repetidamente, enquanto esperava uma atitude do amigo.

Esta veio logo. Quando passos foram ouvidos ao longe ele agarrou com firmeza o braço da menina e se jogou na água. O barulho provocado foi ouvido no convés, e logo inúmeros tripulantes se debruçaram nos parapeitos tentando inutilmente enxergar o que havia caído no negrume que rodeava a caravela. Era uma escuridão tão densa que nem mesmo os brilhantes olhos de Serin puderam ser vistos contrastando com a mesma. Ao colocar a cabeça para fora da água viu claramente o que estava ao seu redor. Não estava fria como temia, mas se permanecessem ali por mais tempo seus músculos já retesados pela temperatura diminuta sofreriam mais. Ambos nadaram até a costa com facilidade, em razão da profundidade que permitia que os pés tocassem o fundo. O iunar a todo custo visava se afastar do navio, nadando na diagonal, pois logo o cadáver que deixara na sala de cargas seria encontrado.

Ao saírem da água caminharam para a direção oposta do barco, confiando na visão apurada dos iunars que permitia que, mesmo naquela escuridão, tudo pudesse ser discernido com clareza. Uma algazarra começou no convés, e marujos começaram a correr para lá e para cá, de armas em punho. Lilnen conseguiu ver tal cena, já que a região do atracamento estava iluminada. Todavia, era incapaz de enxergar um graveto à sua frente naquela penumbra, e por isso foi guiada pelo novo amigo, agarrando-lhe o braço esquerdo. Somente olhos amarelos flutuando em uma mortalha de trevas eram tudo o que avistava naquele momento, como duas velas de chamas fátuas reluzindo em um quarto escuro.

Após andarem algumas centenas de metros se afastando da área de descarregamento do navio se recostaram em uma árvore, ofegantes e com as roupas completamente molhadas. O frio começava a incomodar, e Lilnen comprovava este fato ao tremer incessantemente, rangendo os dentes e se encolhendo contra si mesma tentando aliviar a sensação ruim.

Serin retirou a parte de cima da roupa e chacoalhou seu fino pêlo cinzento, retirando o excesso de água que sobre o mesmo jazia. Ele olhava para a garota, que sofria com o frio e não sabia o que estava ao seu redor, se perguntando por quais circunstâncias estava ali a amparando, quando poderia simplesmente ter subido furtivamente até o convés e pulado para o solo para ganhar a nova terra.

Estes pensamentos foram interrompidos quando Lilnen chamou pelo seu nome: - Serin, o que aconteceu na sala de cargas? Eu fiquei com medo de algo ruim lhe acontecer.

- Nada demais. Eu simplesmente bati com o toco de madeira na cabeça daquele sujeito e o coloquei para dormir. Ele já deve estar acordando agora, me amaldiçoando pela dor de cabeça. Por falar nisso, nós devemos sair daqui o quanto antes, pois os marujos podem tentar nos procurar. – ele respondeu com uma expressão de espanto.

Com sua pata peluda ele pegou a mão da garota e a ajudou a levantar. Firmando os olhos tentava enxergar ao longe qualquer tipo de iluminação, que indicaria um lugar onde poderiam escapar do frio. A mochila da menina a tiracolo estava completamente molhada, e provavelmente a comida lá dentro se perderia. Um lugar aquecido e roupas secas eram essenciais naquele momento, pois a temperatura seria impiedosa e uma doença ou debilidade os atrapalharia largamente no restante da viagem.

- Que maldição de lugar frio! – Serin resmungava a cada passo. - Por qual riqueza interminável alguém viria para um lugar tão amaldiçoado como este?

Enquanto caminhavam os resmungos continuavam, todavia, sem perder de vista os arredores na tentativa de encontrar uma trilha ou iluminação longínqua que indicaria a proximidade de uma cidade ou vila. Lilnen permanecia em silêncio e mergulhada em pensamentos, tentando vencer o frio e o incômodo que as roupas molhadas proporcionavam.

Bem ao longe avistaram uma luz fraca, que poderia significar o fim daquele martírio. Enquanto se aproximavam a imagem de um casebre de madeira e pedra, ao lado de um pequeno curral e de um suposto estábulo, se formava. Uma tocha iluminava a edificação menor, e ao que parecia quem quer que morasse ali já estava a dormir, pois as luzes do maior estavam apagadas. O silêncio pairava nesta área, quebrado apenas pelo cantar do vento que assobiava vez ou outra por entre as árvores formando um réquiem lutuoso de quietude.

Um longo uivo quebrou o silêncio entre os dois viajantes. Um uivo que foi capaz de fazer o iunar arregalar os olhos enquanto olhava para todas as direções possíveis. Lilnen o observava, apreendendo uma nobreza que somente alguém com a sua sensibilidade inocente conseguiria. Aqueles da raça de Serin não eram bem vistos nas terras do continente, sempre associados com covardia e traição. Uma má reputação que os precedia. Contudo, por engano ele estava ali, em terras estranhas e, pelo jeito, hostis, acompanhando-a a cada passo sem pestanejar. Ela percebeu que, apesar de estar sempre à margem da sociedade, vivendo de golpes e possivelmente furtos, ele tinha algo de altivo no seu interior, fator que provavelmente o compelia a ajudá-la. Serin, por outro lado, indagava em seu íntimo o motivo de estar fazendo aquilo, mas não conseguia encontrar repostas e simplesmente o que lhe vinha à cabeça era uma vontade incontrolável de acompanhar sua nova amiga e ver como toda aquela história terminaria.

- Inferno... será que até aqui estes roedores de ossos vão me importunar? – Serin proferiu, desviando o olhar da menina que havia ancorado no seu semblante assustado. Ele se referia a rullnargs, hákans como ele, mas que advinham dos lobos que habitavam os campos centrais de Rháurian. Desde a infância os temia e evitava em razão de algum trauma que não gostava de comentar, e ali não seria diferente.

Apesar de não vislumbrar momentaneamente contra o que o iunar praguejava, Lilnen percebeu como ficou assustado e colocou a mão gelada sobre seu ombro, se esforçando para que o vento frio não penetrasse as vestes pela manga. - São apenas lobos Serin, lobos uivando para espantar o frio. Vamos nos abrigar logo, antes que tenhamos que uivar também. – ela disse, e seu toque doce e as palavras de conforto o acalmaram de uma maneira assombrosa, como se com apenas um leve golpe tivesse espantado todos os uivadores dos arredores.

- Sim, vamos logo. Acho que se abrigarmos neste casebre poderemos sair pela manhã sem nos encontrarem. As roupas na sua mochila devem estar menos molhadas. Você pode vestí-las enquanto estas aí se secam. Grrrrr... que frio maldito... - Serin disse observando a choupana que aparentava ser um estábulo. Seus olhos eram rápidos e atentos, e desde o primeiro encontro Lilnen percebeu que ele nunca a fitava enquanto dizia algo. Ela se sentia mais segura assim, pois sabia que o iunar estaria sempre de prontidão na iminência de qualquer perigo.

A porta do estábulo fez um barulho baixo ao ser aberta, suas dobradiças trincavam com o frio e a madeira estava gelada ao toque. A tocha colocada na parte de fora iluminava o interior com uma luz fraca através de uma passagem pequena, que não havia sido notada por Serin. Além da luz, o vento congelante de Valsegaard também penetrava o estábulo. - Parece que há cavalos aqui Lilnen. – ele murmurou tentando esconder a voz estridente. – Vamos ficar por aqui para nos esconder dos rulln... do frio.

Três cavalos estavam deitados e amarrados em um anteparo de madeiras grossas, como ele pôde perceber quando sua visão se adaptou ao ambiente. O cheiro de esterco entrava nas narinas dos viajantes, misturado com o ar frio que ousava invadir pela passagem.

- Aqui está mais quente e mais claro. Acho que não precisamos mais procurar um lugar para dormir. Você não acha que deveríamos acordar quem quer que more aqui e pedir ajuda? Talvez dê para conseguir algo até melhor, como roupas secas e uma cama quente. - disse a garota enquanto se abraçava tentando apartar a trepidação do próprio corpo.

- Sim! Podemos conseguir também uma porta na face e nem mesmo esse feno sujo para dormir. Ou pior, podemos até ganhar uma escolta de volta para o navio e descobrirem a respeito do que fizemos com o marinheiro. Eu não quero ser mor... - Serin parou, segurando a língua para não falar o que não devia. Ela não merecia ouvir tal blasfêmia. - Eu não quero limpar o convés para pagar a viagem que fizemos escondidos. Vamos ficar por aqui e pronto. Eu sei o que faço, vivi nas ruas e sei como as pessoas nos tratam. - ele concluiu com mais calma.

Assim, ambos se acomodaram no feno que estava espalhado pelo chão. Os cavalos emitiam sons reagindo à presença dos novos companheiros, mas eram baixos e não chegariam à outra casa. Serin estava bastante fatigado e por isso dormiu antes do que a menina, entregando a sua percepção ávida ao toque reconfortante do sono. Uma das grossas vigas de sustentação do teto foi sua cama, bem longe do chão, como de costume.

Ela, por outro lado, tirou as roupas que a incomodavam tanto e se enrolou em um cobertor velho que repousava estendido em um dos anteparos. Uma lona grossa que exalava um odor indicador de utilização sobre os animais. Apenas uma malha leve a separava do contato com o pano, enquanto as roupas molhadas secavam penduradas em um gancho. A friagem causava apenas um leve desconforto, que chegava até mesmo a provocar calafrios seguidos de uma estranha sensação de prazer, fazendo-a apertar ainda mais o corpo contra si mesma.

Nenhum uivo foi ouvido durante todo o restante da noite, e o gelendrariano não soube distingüir se aquilo era bom ou ruim. Os lobos poderiam ter sido afugentados para longe dali... ou estavam muito próximos e silenciosamente furtivos...




Um comentário:

  1. muito boa a sua historia também tenho um blog de historias e poesias da uma passada por lá http://cronicasterrasesquecidas.blogspot.com/

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