quinta-feira, 28 de abril de 2011

OS VIAJANTES SECRETOS - PARTE V



Olá aventureiros.

No último post Serin e Lilnen chegaram à cidade de Ghuldan, e o iunar tentou de todas as maneiras conseguir dinheiro e abrigo para eles. No mercado, Serin conseguiu afanar uma jóia de um mercador. Contudo, ao sair da tenda, o homem o chamou novamente. Teria o gatuno de Gelendral sido descoberto? As aventuras de Serin e Lilnen continuam, em busca do Templo da Aurora...


Hornull, um animal de tração típico das terras de Valsegaard, que chega a 2,6 metros de altura.


OS VIAJANTES SECRETOS PARTE V

Caminhando com velocidade e tentando ser discreto, ele apressou o passo, e após alguns metros andados ouviu a voz do mercador novamente gritando: - Ei você aí...

Seu coração palpitou forte, e um turbilhão de pensamentos vagueou na sua mente em um mesmo instante. Serin olhou rapidamente ao seu redor, mas nada ali poderia dar uma boa cobertura para uma fuga. A única opção seria correr, mas as pessoas logo perceberiam que estava fugindo de algo. Respirando fundo, se virou para a tenda de onde o mercador chamava, escondendo o temor por debaixo do capuz. - A propósito, meu nome é Sehngar. Caso não me encontre, procure por este nome aqui nos arredores da parte oeste da feira. As pessoas lhe dirão onde estou.

Serin respirou aliviado, acenando com a mão como resposta. A pedra estava no seu bolso, e certamente garantiria uma soma vultosa de moedas em qualquer lugar. Agora ele deveria procurar Lilnen e sumir dali, pois logo o furto seria percebido e encontrar um membro da sua raça em um local tão pequeno não seria muito difícil. O medo havia passado, e ele esboçava na face um largo sorriso de contentamento. - Mais uma vez Serin, o grande ladino, se superou. - ele pensou, congratulando a si mesmo pela vitória que acabara de conseguir.

Durante o caminho se lembrou do que ocorreu durante a conversa com o mercador. Aquela bagunça que acontecera no meio da praça prenunciou a presença de uma caravana, e esta poderia ser uma boa solução para a tarefa de deixar aquele vilarejo. Ao mesmo tempo Serin pensava o quanto poderia pedir na pedra, pois havia se esquecido de angariar esta informação junto ao comerciante. As moedas roubadas seriam suficientes para um ou dois dias em uma estalagem, o bastante para que conseguisse vender a jóia.

Retomou o caminho até se aproximar do local em que havia deixado Lilnen, e ao longe a avistou, ainda com as crianças. Todos estavam sentados nas escadas de uma edificação, e ao que parecia ela lhes contava algo, a julgar pela forma que escutavam atentamente. Serin a observava, e enxergava alguém muito superior a ele, alguém que de uma maneira ou de outra fazia com que se sentisse uma criança desprotegida novamente.

Lilnen estava em um local muito diferente, apenas com a roupa do corpo e sendo seguida por pessoas que queriam a sua morte. Mesmo assim, na fadiga ou no medo, irradiava uma beleza incomum que não vinha de seu belo rosto, mas sim do interior. Contornada por adversidades, permanecia serena, capaz de encontrar tempo para brincar com inocentes crianças que nem tinham idéia do que ela passava. Sua sensibilidade era tamanha ao ponto destas mesmas crianças não perceberem que por dentro ela estava triste. Serin não era capaz de entender o que ela sentia, pois ambos eram bastante diferentes. Ele cresceu rodeado de miséria e medo, sem saber o que lhe aguardava no dia posterior, e por isso passou a encarar o mundo de uma maneira pessimista. No entanto, ainda tinha um pouco de sensibilidade, suficiente para perceber a bondade nas atitudes da nova amiga, sentimento que o guiava misteriosamente na tarefa de ajudá-la a encontrar o tal Templo da Aurora.

- Muito bem companheira, os deuses sorriram pra nós hoje. Vamos, vamos rápido, quero sair deste vento maldito que tá congelando meus dedos. – Serin disse atraindo a atenção de Lilnen, que olhou para ele contente ao ouvir sua voz. Ela contava para as crianças uma história que ouvia quando ainda era uma criança no reino de Lynph, sobre as aventuras de um grande herói que foi vítima de traidores e buscava recuperar as suas glórias. Ela ainda não havia terminado, mas mesmo assim se levantou, limpando um pouco da neve que havia ficado sobre o seu manto.

- Meus queridos, tenho que ir. Foi muito bom passar a manhã com vocês. Adeus e até breve. - Lilnen disse com um sorriso no rosto fitando as crianças, que ainda a observavam atentamente.

- Mas você não terminou a história. Como Róran consegue se vingar? - perguntou uma delas.

- Não querido, ele não buscava se vingar. A vingança era um sentimento que não existia no coração nobre de Róran. Ele apenas buscava ser o que era antes, a fazer as pessoas voltarem a pensar bem a seu respeito. E vocês não devem se preocupar com o fim da história. Vivam suas próprias. Se tiverem um coração bom como o de Róran, o final da história sempre, não importa o que aconteça, será de muita felicidade. Adeus meus queridos. - ela disse acariciando os cabelos do menino.

Lilnen e Serin se viraram, seguindo à frente enquanto conversavam. Com as poucas palavras de Lilnen o iunar pôde aprender bastante, e a cada segundo que se passava ele a admirava com maior intensidade. - O que você fez durante este tempo todo Serin?

- Bem, eu andei por aí à procura de trabalho, e durante o caminho encontrei uma bolsa com algumas moedas e uma pedra dentro. Por isso disse que os deuses sorriram para nós. Não é muita sorte encontrar estas coisas pelo chão? - ele respondeu sem olhar para ela, pois temia que ao ver o seu olhar Lilnen percebesse que estava mentindo. Serin mentiu durante toda a vida e nunca se sentiu mal com isso, mas quando o fazia para a garota sentia um aperto forte no coração que o sufocava e deixava ofegante.

- Que bom, isso pode ser um presságio de que as coisas irão melhorar para nós dois. Agora temos que descobrir onde fica o Templo da Aurora.

- Eu perguntei por aqui e as pessoas disseram que fica pro norte, mas não souberam dizer a direção exata. Eu vi uma caravana formando na praça de mercado daqui, e um dos mercadores disse que ela seguiria pro norte, ao que parece para uma cidade grande. Lá nós podemos conseguir pistas melhores de onde fica esse mald... esse templo que você procura. - o iunar respondeu, em um breve surto de descontentamento com a situação. Apesar de tudo Serin, no fundo, não estava gostando do que passava. Sua barriga estava vazia e o frio o castigava a cada vez mais.

Após uma breve procura eles entraram em um lugar que parecia uma loja de itens variados. Com o dinheiro recém adquirido compraram alguns pães e frutas frescas, além de um monte de ração, que seriam essenciais na viagem que aos poucos se revelava. Um punhal, uma pedra preciosa, uma mochila com pães, frutas e ração e um cantil cheio d'água era tudo o que tinham. Serin descobriu através do dono da venda que a caravana realmente estava indo para o norte, especificamente para a cidade de Thoriv, que era a maior da região. Eles poderiam seguir juntamente com a mesma, mas provavelmente teriam que andar todo o caminho a pé. Se a viagem fosse longa poderiam ficar para trás, principalmente Lilnen, que já estava bastante cansada e sem dormir bem. Ficar para trás em um lugar desconhecido e de clima tão hostil era a última coisa que ele queria.


***

Serin precisava encontrar alguém que possuísse uma carroça e pudesse levá-los, mas temia o fato de voltar à praça de mercado. Por isso, levou Lilnen até a saída do vilarejo, visando esperar que a caravana saísse. Segundo as informações que corriam entre as pessoas de Ghuldan a formação da caravana já estava sendo terminada, e logo no início da tarde se colocaria no caminho da viagem. Desta forma, Serin e Lilnen permaneceram na saída do vilarejo, sentados em um grande tronco de uma árvore que havia sido arrancada. Esperaram até o momento em que a caravana tomaria a estrada, enquanto faziam um desjejum com os mantimentos recém adquiridos.

A espera durou cerca de uma hora, e enquanto isso conversaram a respeito do que poderiam fazer a partir dali. Serin mostrou a pedra preciosa para a menina, que ficou ao mesmo tempo admirada, tamanha a sua beleza, e também triste, pelo fato da pessoa que a perdeu ter, possivelmente, tido um grande prejuízo. Ele se perguntava o quanto aquela pedra valeria, e se através da venda da mesma se tornaria um sujeito rico. Seus pensamentos foram interrompidos com um súbito e alto barulho provocado no vilarejo. Ao olhar para a direção dos sons ele viu várias carroças e pessoas passando entre as edificações, vindo na direção em que estavam. Era a caravana, finalmente...

***

Homens vestidos com armaduras de couro batido, cobertos por grossos mantos de peles e portando espadas e lanças vinham à frente montados em cavalos de uma raça que eles nunca haviam visto. Provavelmente os guardas mercenários da caravana. A presença deste tipo de pessoas no grupo denotava perigo, e isso deixou Serin bastante preocupado. Logo atrás vinham várias pessoas e as carroças, puxadas por criaturas estranhas para Serin e Lilnen. Elas tinham a face semelhante à de um boi, com dois grandes chifres pretos na fronte e dentes pontiagudos protuberantes. O corpo também era semelhante ao de um bovino, porém, quase duas vezes maior e inteiramente coberto por um pêlo espesso, de cor branca. As pernas eram cobertas pela mesma camada de pêlos, sendo grossas e musculosas, com patas terminando em garras. Estes animais demonstravam ser bastante fortes, pois as carroças puxadas eram imensas, provavelmente as que continham as mercadorias de quem conduzia a caravana, como era de costume nas terras do sul. Agora só lhes restava encontrar alguém disposto a permitir uma viagem em uma das carroças.

Lilnen observava aquilo tudo, vendo pessoas simples, até mesmo debilitadas, se colocando a caminhar juntamente das carroças. Valsegaard definitivamente não era como Lynph, e isto podia ser visto na vida que os seus habitantes levavam. - Espere aqui Lilnen, eu vou ver se consigo convencer alguém a permitir que viajemos em alguma das carroças. - disse Serin, se dirigindo até as carroças.

Ele olhava cada uma delas, perguntando às pessoas se ele e uma garota poderiam acompanhar na viagem, passíveis de ajudar em qualquer tarefa proventura necessária. A viagem duraria cerca de três semanas, e era de extrema necessidade que conseguissem ao menos um abrigo durante as noites em que a caravana estivesse parada. Serin perguntou a várias pessoas, mas a maioria nem mesmo dava atenção, temendo a companhia de estranhos.

Após vários pedidos ele se voltou para um carroção de porte médio, puxado por duas das criaturas estranhas que havia visto. Guiando os animais estava um carroceiro de meia-idade, notório pelos cabelos e a barba grisalha. Além do rosto, apenas os braços podiam ser vistos segurando as rédeas, pois todo o seu corpo estava coberto por um manto de peles grosso e de cor escura.

- Como vai senhor? - Serin saudou cordialmente, completando logo em seguida: - Vejo que viaja sozinho, e por isso tenho algo lhe pedir. Preciso acompanhar esta caravana até a cidade, mas estou com uma garota e acredito que ela não conseguirá a pé. Se não for incomodá-lo, peço que permita que nós o acompanhemos, e em troca poderei ajudá-lo em qualquer tarefa que precise. Farei um negócio quando chegar na cidade, e posso lhe pagar algumas moedas quando chegarmos lá. - Serin estava sem o capuz, e andava lentamente acompanhando a carroça enquanto falava.

- Onde está a menina? - perguntou o carroceiro sem desviar o olhar dos animais.

- Ela está logo ali, sentada naquele tronco. - respondeu apontando na direção de Lilnen.

- Tudo bem bestial, ela pode ficar aqui, mas você terá que ir andando. - disse o carroceiro novamente, desta vez olhando para o iunar de uma maneira severa.

- Sem problemas meu caro senhor, eu posso seguir a pé. - Serin respondeu franzindo a testa, pois aquela era a primeira vez que alguém o chamava de bestial. Ele olhou para a direção em que Lilnen estava, mas ela observava a carreira que passava, totalmente distraída. Serin gritou pelo seu nome, acenando com a mão para que ela viesse até a carroça do grosseiro condutor.

- Olá senhor, esta é a garota que me acompanha. - disse Serin com o braço em volta dos ombros de Lilnen. O carroceiro olhou para ela, e seu semblante rude mudou para um de surpresa.

- Como vai senhor? Eu me chamo Lilnen, e agradeço a bondade de deixar que nós viajemos em tua companhia. - disse ela com a voz calma. - Este é Serin, um amigo que me acompanha em minha viagem. Prometo que o senhor nem mesmo vai notar a nossa presença. - ela completou.

- Eu sou Dorgun, e preparem-se para uma viagem difícil. Os ventos do inverno já estão chegando e nos atingirão no meio do caminho. Pode se acomodar em algum canto da carroça e descansar. Você parece não ter dormido e nem comido bem durante os últimos dias. - disse o carroceiro mexendo as rédeas para que os animais acelerassem o passo. Serin a ajudou a subir, e lhe deu a mochila para que não precisasse carregá-la durante o caminho.

- Você não vem Serin? - Lilnen perguntou para o iunar.

- Não Lilnen, eu vou andando para não pesar muito a carroça. Tente dormir um pouco e descansar. - ele respondeu sem fitar a garota, se lembrando das palavras do carroceiro. Colocando o capuz, continuou o caminho ao lado da carroça, enquanto pensava o que o aguardaria à frente...


Em breve, mais aventuras dos viajantes secretos. Novos companheiros se juntarão à jornada em busca do Templo da Aurora...

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A LENDA DO OLHO DEMONÍACO DE KYOUSHI


"Esta é uma lenda contada nas terras isoladas de Ran-Sayama, no extremo leste de Rháurian. O reino dos peculiares guerreiros que aliam punhos e pés nus ao uso de armas exóticas."


A história do olho demoníaco começou no período da ascensão de Mikhal, o lendário unificador de Ran-Sayama. Kyoushi, o mais novo filho do rei Mikhal, nasceu saudável, porém, com uma estranha anomalia. Seu olho esquerdo era de um vermelho vivo, como sangue. Muitos contos surgiram no período, mas o que mais reverberou foi aquele contado por uma feiticeira ligada à corte, que dizia que o portador de um olho demoníaco surgiria para assassinar o guerreiro que já havia matado mais de cem homens, assim como mataria toda a sua linhagem.

Mikhal era esse homem, o maior espadachim de Ran-Sayama no período. Incapaz de acabar com a existência do próprio filho, mas preocupado com a sua própria vida e com a vida de seus outros três descendentes, Mikhal mandou um dos seus generais deixar a criança sob os cuidados de um eremita nos Picos da Serpente, distante das histórias e da civilização. Dessa maneira, ele nunca saberia dessa profecia e viveria sua vida longe da corte sayamana. O que o nobre monarca não esperava era uma traição por parte do general, em conluio com a feiticeira.

Kyoushi foi criado nas montanhas e tutelado nas artes marciais sayamanas. O eremita que o criou, sob constante fiscalização dos traidores, lhe ensinou a arte da guerra. Estes, por outro lado, macularam seu coração. O menino cresceu e se tornou um hábil espadachim, que lembrava em muito o pai ao lutar. No entanto, alguma coisa era estranha em Kyoushi. Era frio, insensível e tinha um olhar sedento por algo além. Algo que assustava o velho que por ele estava responsável.


Em um dia de visita ao vilarejo próximo das montanhas, como fazia geralmente para vender os excedentes da colheita, ele foi abordado por baderneiros nas ruas, e por fim os matou com a sua lâmina. Seu olho demoníaco se manifestou pela primeira vez, radiando um brilho sangrento. Pétalas de flor de cerejeira voaram pelo local da batalha, como uma cortina selando a morte dos adversários do menino de apenas quinze invernos de vida. Ele havia encontrado o que procurava...

Kyoushi fugiu para uma floresta, caçado por guardas e habitantes locais, que o consideraram um demônio que deveria ser morto para não trazer maldição e azar para aquela terra. Durante essa fuga, indo de lugar para lugar, o jovem encontrou um mosteiro embrenhado em uma cadeia de montanhas perigosíssima, onde a maioria dos sayamanos não ousava ir. Ele escalou e alcançou a edificação, descobrindo que era de longe muito mais perigosa que o relevo acidentado do lugar. Ao ser recebido pelos estranhos moradores, se deparou com uma ordem de samurais que adorava forças demoníacas, que seguiam velhos textos de ensinamentos marciais que os fariam ser os mais poderosos e letais sobre as terras sayamanas. Eram os Samurais Vermelhos de Hiey Lan, que no futuro se tornariam os andarilhos mais temidos sobre Ran-Sayama.

Sedento por poder e instigado pelo olho demoníaco, Kyoushi adentrou o templo, passou por testes desumanos e, durante longos anos, aprendeu segredos sobre a espada e sobre a morte nos velhos pergaminhos estudados pelos samurais. Rapidamente ele se tornou o mais eficiente dentre todos, rivalizando até mesmo os mestres. Seu olho demoníaco se tornou uma lenda entre os enclausurados, e muitos se perguntavam se o novo residente era o próprio ser ancestral que cultuavam, se manifestando em forma humana. Essas lendas acabaram no dia em que ele, usando um rito de conjuração secreto e proibido, convocou o espírito do demônio e, para a surpresa de todos, o desafiou para lutar. Em uma luta sangrenta, Kyoushi o venceu, e quando o fez o espírito deixou a forma fumegante que jazia aos pés do guerreiro e tomou o seu corpo. Por fim, após tal acontecimento, se tornou o líder dos samurais e iniciou o plano de conclusão da profecia que aprendera durante anos, subjugado pelos sussurros da feiticeira. Vencer o melhor espadachim de Ran-Sayama e matar seu pai. Tudo em uma única ação.

Kyoushi assassinou mais de cem homens, buscando uma oportunidade de enfrentar o rei sayamano. Após alguns anos conseguiu encontrar Mikhal e desafiá-lo, quando este meditava e caçava em um bosque de cerejeiras. Ninguém presenciou o combate, mas o rei conseguiu matá-lo trapaceando, utilizando um dardo envenenado que atirava do punho em um mecanismo escondido. Ele já estava à beira da morte em razão dos golpes que recebera do filho, que se mostrou um combatente muito superior. No entanto, em razão do veneno, ele morreu ali, mas o espírito do olho demoníaco não havia sido vencido. Kyoushi não era mais apenas um simples guerreiro. Era um espírito maligno e cruel que ainda ceifaria muitas vidas. Prisões de carne não mais o cerceariam, e bastaria uma reencarnação em novas formas de vida para continuar seu legado.

Durante as centenas de anos que se passaram crianças com um olho vermelho nasceram em Ran-Sayama, e uma lenda acerca das mesmas acabou sendo criada, as denominando os assassinos do olho demoníaco. Os kyoushis...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

OS VIAJANTES SECRETOS PARTE IV

No último post Serin e Lilnen chegaram a um pequeno aglomerado de civilização, cujo nome, conforme uma placa, era Ghuldan. Eles não têm dinheiro algum e, pior do que isso, não fazem a menor idéia de onde estão... cabe a Serin, o grande ladino, resolver esses novos problemas que se desdobram para continuar o caminho que leva ao Templo da Aurora.




Mapa da região oeste de Valsegaard


OS VIAJANTES SECRETOS PARTE IV


Serin avistou várias pessoas andando aleatoriamente, carregando caixas ou conduzindo cavalos puxando carroças de carga. De perto o local não parecia ser tão rústico como havia pensado inicialmente, e já estava até mesmo se acostumando ao ambiente, tanto que esboçou um sorriso ao ver uma aglomeração de pessoas pelas ruas de terra úmida. - Um prato cheio para o grande ladino Serin. – disse para si mesmo.

Algumas crianças brincavam em um canto próximo de uma edificação totalmente construída em madeira, que tinha pendendo sobre a porta uma placa colorida que revelava se tratar de uma estalagem. Saindo de perto do iunar, Lilnen se dirigiu até as crianças enquanto olhava fixamente para a pequena bola que elas arremessavam umas para as outras. Há mais de vinte dias ela sequer havia parado em qualquer cidade, temendo que os agentes de Siranan descobrissem o seu paradeiro. Durante esse mesmo lapso temporal não vira uma imagem bonita como aquela que estava diante dos seus olhos. Estava a todo momento correndo, dominada por uma tensão e um medo que chegavam a machucar o seu coração.

- Olá crianças! - disse, se dirigindo a todo o grupo enquanto acariciava o cabelo de uma das meninas. Os infantes, que estavam em sete, sendo quatro deles meninos, olharam para ela com um olhar de admiração, com olhos cristalinos que passavam uma inocência inconfundível. As faces de todos estavam um pouco sujas, com formas de dedos finos e pequenos de lama seca, mas a beleza do tom corado devido ao frio que incidia nas bochechas sobrepujavam essa sujeira.

Apesar de ter também a pele clara, era perceptível que Lilnen não era dali, pois sua face não demonstrava as marcas das terras frias de Valsegaard. No entanto, as crianças não eram capazes de distinguir esta característica, e logo uma delas inquiriu: - De onde você vem? Da ponte leste? - Lilnen imaginou que este devia ser algum lugar do vilarejo, e prontamente respondeu ao menino:

- Não querido. Eu não sou daqui. Venho de uma terra distante, além do mar congelado. Eu não sei o nome deste lugar, e talvez vocês poderiam me ajudar.

Assim que o disse Lilnen se lembrou da face preocupada de Serin, que durante todo o caminho dizia que eles não podiam ser descobertos. Esta informação poderia ser bastante útil para os agentes de Siranan, mas preferiu confiar na inocência das crianças que a fitavam atentamente.

- Esta é a vila de Ghuldan. O que você veio fazer aqui? - disse uma das crianças, que segurava entre os braços a bola que jogavam.

- Nada demais, vamos dizer que eu vim apenas para brincar com vocês. Vamos, joguem a bola para mim - disse estendendo os braços para receber a bola arremessada pelo menino. Isto feito, permaneceu ali, brincando com aquelas crianças como se fosse uma delas. Sentiu um alívio se espalhar pelo corpo, pois aquilo tudo fazia com que se lembrasse da infância, quando tudo era tranqüilo e passeava nos bosques de Lynph brincando durante todo o dia. Há muitos dias Lilnen não se sentia desta maneira, e sua felicidade interior dominou todo o medo que sentia, que perdurava desde a fuga de sua terra natal.

- Ei Lilnen, fique aqui enquanto eu vou andar por aí para conhecer a cidade. Não saia até eu voltar. - disse Serin tentando entender o motivo dela estar fazendo aquilo. As crianças estavam tão vidradas na imagem de Lilnen que nem perceberam a presença do iunar, um ser provavelmente estranho e incomum para elas. Ela, por sua vez, estava tão concentrada nos seus pensamentos que apenas respondeu secamente. Para ele o fato dela permanecer ali apenas ajudaria, pois ficaria mais fácil de agir, sem precisar esconder o que estava fazendo.

Assim, Serin saiu em direção ao movimento de transeuntes que havia visto ao longe, observando cada centímetro do vilarejo para poder fugir se fosse descoberto. As casas de madeira úmida dificultariam bastante um furto de residência ou até mesmo uma escapada, pois sem equipamentos adequados e com a superfície escorregadia teria dificuldades em escalar. Restava, portanto, furtar bolsos como única alternativa. Uma atividade que rendia lucros pequenos, principalmente em um lugar como aquele, mas era aquela em que o ladino se destacava com maior perícia, fruto de anos vivendo no mercado de Gelendral.

Chegando ao local ele encontrou uma grande praça de chão ladrilhado com pedras manchadas em tons de cinza variados. Logo constatou que aquele era o mercado local, pelas conversas entre as pessoas e a aglomeração de tendas, caixas e mercadorias variadas em todos os cantos. Ao que parecia tudo o que estava sendo vendido veio através da embarcação na qual ele e Lilnen navegaram clandestinamente, pois certos itens certamente vieram do sul, como uma estátua de madeira representando um draconiano ou uma espada com a marca do exército de Sauroth. Serin movia os olhos com velocidade, escondido sob um capuz, e tinha uma grande facilidade para perceber detalhes nos itens e objetos ao seu redor, uma aptidão adquirida durante a vida de golpes que levou na cidade natal.

Durante mais ou menos a metade de uma hora andou por toda a praça de comércio, analisando tanto itens quanto pessoas, escolhendo a oportunidade correta. Conversou com vários habitantes, e no meio das multidões confusas tentou se apropriar de algumas moedas das algibeiras presas nos cintos dos mais incautos. Por fim, conseguiu onze moedas estranhas feitas com um metal que parecia cobre, porém mais escuro, e também outras três que lhe eram familiares, comuns em todas as nações do continente de Rháurian. Os craves, maneira pela qual o dinheiro era denominado naquela terra, se assemelhavam aos ýrgs, mas demonstravam a falta de uma marcação ou qualquer outra peculiaridade. Os três ýrgs que conseguira tinham a marca da Casa de Cunhagem de Gelendral, e logo Serin percebeu que as atividades comerciais entre as terras do sul e Valsegaard eram bem mais freqüentes do que imaginava.

Estava insatisfeito, pois aquele dinheiro não seria suficiente para que pudessem passar alguns dias com tranqüilidade. Além de tudo, era bastante autoconfiante e demandava mais de si, se considerando capaz de conseguir algo melhor do que simples quatorze moedas. E realmente o iunar ladino era plenamente capaz.

Ao rodar pela praça do mercado teve sua atenção voltada para uma tenda na qual um mercador gordo e com uma barba longa vendia pedras preciosas variadas. Assim que a viu se aproximou, tentando não deixar evidente o seu sangue hákan, algo um pouco difícil por estar sob a luz do dia. - Bom dia caro amigo. Estou interessado em uma destas... pelos deuses, que bela pedra... - ele disse pegando uma pedra redonda, feita de um mineral de tonalidade verde escura que nunca havia visto na vida. - ... eu nunca havia visto tantas nessa região. Minha senhora reclamava que não encontrara nada por aqui que fosse digno de sua atenção ou de suas riquezas, mas acho que ela não havia passado por esta parte da feira ainda. – Serin completou enquanto pegava outras pedras, tentando dar um ar eloqüente à sua fala.

O homem o observava com uma leve expressão de felicidade. Por sua vez, ele fazia o mesmo, com os olhos dissimulados pelo manto esperando o momento correto de pegar alguma das jóias. As duas orbes amarelas e fendidas passavam rapidamente por toda a tenda, buscando pedras parecidas que pudessem enganar a visão do comerciante.

- Você veio da caravana de Saubher? Soube que alguns nobres estão nela para comprar as mercadorias que chegaram das terras do alem-mar. - perguntou o mercador, com uma voz rouca e grossa que a princípio assustou Serin.

- Sim, vim de Saubher, acompanhando minha senhora. Terlendir de Asiran. Ela possui muitas riquezas, e quando não consegue algo de seu agrado para comprar fica com um humor terrível. Você, provavelmente, além de se tornar um homem rico, vai me salvar de uma tempestade de insultos e grosserias quando ela pregar os olhos nestas jóias. – ele respondeu enquanto continuava averigüando as preciosidades, disfarçando a direção do olhar com o capuz.

- Bem, acho que ela vai gostar destas opalas marinhas, colhidas nas distantes costas do norte daqui. - disse o mercador bem mais empolgado, vislumbrando a grande possibilidade de negócios que estaria por vir. - Estas aqui são chamadas de cristais de neve, e podem render brincos bonitos ou adornos que cintilam quando atingidos pelas luzes. - completou, mostrando ao iunar um grupo de cristais de cor branca muito bonitos.

- Sim, muito belas estas preciosidades. Mas olhando bem, acho que ainda é pouco para minha senhora. Vou procurá-la, ela deve estar por aí esperando que eu leve boas notícias. Infelizmente não as levarei. - disse Serin em um tom de desapontamento, que atiçou ainda mais as pretensões de venda.

Enquanto falava e segurava nas mãos o grupo de pedras ele deixou que uma delas escorregasse entre os seus dedos, que não voltaria para a barraca quando fossem colocadas novamente no lugar. Sua habilidade manual era incrível, e facilmente escondeu a pedra em um bolso no manto. Percebendo que poderia perder a freguesia e empolgado com a história do iunar, que sempre era usada nos seus golpes em Gelendral, o mercador logo respondeu às palavras desanimadas que acabara de ouvir:

- Não, não faça isso. Tenho certeza que sua senhora vai gostar das pedras que tenho aqui, que serão com certeza dignas de seu bom gosto e agrado.

Ele se abaixou na tenda, procurando algo que Serin não podia ver. Uma caixa grande foi colocada sobre a mesa de amostras, e quando aberta revelou outras quatro caixas metálicas adornadas. Ele logo pensou que ali dentro deveriam estar pedras muito valiosas, e se animou, pois o fato de estarem dentro de uma caixa seria suficiente para que ganhasse alguns segundos antes da remoção ser percebida. - Bem, olhe bem para estas pedras meu caro, pois não encontrará nenhuma delas em qualquer outro lugar. Tenho certeza que sua senhora ficará feliz em vê-las, pois são valiosas e raras, e farão dela a mulher mais bela dos bailes da nobreza de Saubher.

Serin viu uma chance perfeita para conseguir algo bastante valioso. Os mercadores geralmente não deixavam os clientes tocarem por muito tempo as mercadorias, mas aparentemente aquele não tinha muita experiência. Ele vibrou, no seu íntimo, pedindo aos deuses que todos os mercadores de Valsegaard tivessem aquela conduta negligente. Para o seu azar a história não era bem assim, e toda aquela liberdade era apenas em decorrência da história convincente que fez o comerciante se interessar bastante pelo negócio.

Quando a primeira caixa foi aberta um belo rubi lapidado foi revelado. O iunar se espantou com a beleza da pedra, e também com o fato de estar sendo comercializada ali, em um local aberto. - Agora sim a viagem de minha senhora desde Saubher valerá a pena. O que você tem nas outras caixas para me mostrar? – ele disse sem tirar os olhos da preciosidade, se contendo para não tentar pegá-la e correr entre a multidão.

Antes da resposta uma grande balbúrdia começou a acontecer no meio da feira, provocada pela passagem de um monte de carroças e pessoas. Serin olhou para ver o que estava acontecendo, constatando que provavelmente deveria ser uma caravana se aprontando para partir. - Para onde estas pessoas estão indo? - ele perguntou, voltando os olhos para as outras caixas.

- Não sei ao certo, mas acho que estão se aprontando para viajar até a vila de Hastur e depois continuar seguindo para o norte.

Uma segunda caixa foi aberta, desvendando uma pedra muito semelhante à que o iunar acabara de surrupiar. - Este é um cristal de neve, porém, como pode ver, ele foi lapidado e transformado nesta bela peça. Um trabalho digno dos mais hábeis joalheiros em todo o mundo.

Naquele momento o ladino viu uma chance única de conseguir a pedra, talvez o item de maior valor que conseguiria afanar em toda a vida. Lithlen havia sorrido para ele naquela manhã. – Dizem também que é bastante utilizada por magos para conjurar poderes arcanos maravilhosos e alimentar suas armas mágicas.

Além de ser movido pela necessidade e pela beleza da pedra, se motivou também pelo desafio da ocasião, que exigia uma rapidez enorme com as mãos. - Posso ver esta pedra de perto? – ele perguntou enquanto procurava no bolso a pedra furtada, colocando-a entre os dedos. Após um aceno de cabeça positivo Serin pegou a caixa nas mãos, segurando-a na altura da barriga enquanto olhava para a jóia.

- Acho melhor nem tocar, de tão frágil que aparenta ser. É melhor que eu a veja dentro da caixa mesmo. - ele disse, olhando ao redor procurando algo que pudesse distrair o mercador. - Esta pedra à sua direita, perto das verdes, qual é o nome e o seu valor? - ele perguntou, tentando desviar o olhar do homem, que permanecia à sua frente de braços cruzados.

O breve momento que o mercador utilizou para olhar sobre quais pedras o iunar perguntava foi suficiente para que ele pudesse agir. Serin, com apenas uma das mãos, rapidamente deixou a pedra menos valiosa rolar para dentro da caixa, e quando o mercador já voltava seu olhar para responder à pergunta o cristal de neve lapidado foi captado entre seus dedos peludos. - Esta é uma opala manchada, uma pedra normalmente encontrada nas terras do sul. - respondeu o mercador enquanto Serin olhava para baixo tentando esconder a tensão e o nervosismo.

Ele virou a caixa para a direção do mercador fechando-a rapidamente, mas de maneira que pudesse perceber que a pedra ainda estava lá dentro. Como elas eram semelhantes ele nem notou a diferença ao ver o vulto branco da jóia que descansava no seu interior. - Bem, pelo que conheço da minha senhora esta pedra vermelha com certeza será a que mais lhe agradará. Por favor, não saia daqui, pois como disse o senhor será a minha salvação. Esta praça é muito grande, e será difícil encontrá-lo novamente.

O mercador pegou a caixa nas mãos, e Serin temeu por um momento que ele a abrisse. Isto não aconteceu, e quando o iunar já se virava para ir embora o homem disse: - Não vai querer olhar as outras caixas senhor? As pedras são também muito belas, e podem ser do agrado da nobre senhora.

Ele segurou as pernas no lugar tentando disfarçar o nervosismo, pois o humano ainda estava com a caixa nas mãos. - Não, assim vou perder muito tempo. Trarei minha senhora aqui, e ela poderá ver com os próprios olhos. Até logo. - Serin disse e se virou rapidamente, dando as costas enquanto respirava ofegante.

Caminhando com velocidade e tentando ser discreto, apressou o passo, e após alguns metros andados ouviu a voz do mercador novamente gritando: - Ei você aí...

Seu coração palpitou forte, e um turbilhão de pensamentos vagueou em sua mente em um mesmo instante. Serin olhou rapidamente ao seu redor, mas nada ali poderia dar uma boa cobertura para uma fuga. A única opção seria correr, mas as pessoas logo perceberiam que estava fugindo de algo. Respirando fundo, se virou para a tenda de onde o mercador chamava, escondendo o temor por debaixo do capuz...

- Fui descoberto. - ele pensou...


quinta-feira, 17 de setembro de 2009

A CANÇÃO DA FLORESTA


Pés descalços caminhavam sobre o tapete amarelo e marrom que agora cobria o bosque, vagarosos, como se tentassem sentir cada grão de areia ou folha de grama que ali jaziam. Passadas tão leves e suaves que nem mesmo estalavam as folhas secas e douradas que compunham a mortalha que se formara sobre o chão. Um som baixo e suave aos poucos invadia o silêncio que reinava entre os troncos. Uma melodia lenta e triste, oriunda de uma flauta élfica. Contudo, tão atraente e encantadora quanto quem a transformava em notas delicadas...

Ainda que fosse uma canção melancólica, aquela que a tocava não compartilhava da mesma sensação. Era um período do ano que a fazia se sentir viva, livre. Uma lisérgica felicidade que se espalhava por todo o corpo, e timidamente contagiava tudo ao redor à medida que as copas das árvores desfaleciam. Sua presença ali acalentava até mesmo o vento, que soprava mais fraco e melodioso, criando um fundo perfeito e harmonioso para a música.


Nunnien caminhando pelos bosques de Falimor


À medida que a druida passava cada uma das árvores ressoava bem baixo o seu nome, completando o arranjo musical. Muito tempo havia se passado, mas estava de volta ao lugar que sempre chamara de lar...

Flauta, vento e o cantar das folhas, compondo uma canção de celebração pelo retorno de Nunnien...




domingo, 6 de setembro de 2009

A PRIMEIRA LIÇÃO ARCANA



Chovia muito naquela noite, uma tempestade torrencial...
Eu morava em uma pequena torre feita de pedras negras e enrugadas, bem afastada da vida cotidiana nas vilas. Apesar da falta de contato com os outros, gostava daquela vida. Afinal, não podia reclamar...
Fui abandonado quando criança por meus pais, perto desta mesma torre. A vida era bem mais difícil naquela época, pois a fome atingia a todos os camponeses e as condições das águas nos poços eram precárias, o que deixava a maioria deles doente e prestes a receber o abraço dos frios dedos da morte. Na esperança de que o velho sábio cuidasse de mim meus pais me deixaram aqui. Ele, então, me acolheu.
Por poucas vezes perambulei pela vila vizinha, um lugar bom para se viver hoje em dia. As pessoas o conhecem apenas como o Velho Arcano, e com certeza não o temem menos do que temeriam a um dragão negro ou lorde tirano. Sua reputação nunca foi das melhores nos arredores de Brieltar, e é exatamente isto que me dá mais prazer em viver nesta torre mal acabada. A mera menção de seu nome, para os habitantes desta vila, é sinônimo de maldição, morte, medo. Para eles, ele é apenas um mito, usado para assustar crianças ou para fazerem-nas ir logo para a cama. Para mim, ele existe realmente, e tenha certeza que este medo não é em vão. Seu poder é grandioso, e eu, há vinte e três invernos, tenho a honra de tratá-lo como pai. O verdadeiro pai que foi para mim.
Apesar de ser um pai rígido, e às vezes um pouco rude, eu o amei de coração. Tudo o que hoje sei, a ele devo. Lembro-me claramente quando o ensinamento começou. Eu limpava a biblioteca, há treze invernos passados. Meu pai, ou o Velho Arcano, como preferir, havia saído para uma reunião com seus velhos companheiros. Pertencia a um grupo de arcanos que denominavam sua organização como a Ordem Arcana da Umbra. Suas reuniões eram realizadas sempre ao cair da noite, em uma floresta perto de nossa torre.
Ele já estava fora por algum tempo, e eu limpava a biblioteca sempre quando estas reuniões aconteciam, para que pudesse chegar e estudar confortavelmente. Ao arrumar os livros nas prateleiras um deles, empoeirado e de aparência velha, com uma capa de cor negra, feita de couro bem duro e resistente, chamou minha atenção. Tinha uma dobradiça enferrujada, que o prendia de forma que não pudesse ser aberto. - “O que haveria de tão importante nas suas páginas para que meu pai não quisesse que fosse lido?” - me questionei.
Com os dedos trêmulos, o coração batendo forte, e um longo suspiro, retirei a camada de poeira que o cobria. Escrito em relevo, na cor prateada, estava a palavra Grimoire. -“O que esta palavra significa?” - pensei comigo mesmo.
- “Significa que você quer saber o que não lhe diz respeito, meu curioso filho!” - respondeu a voz de meu velho pai à minha retaguarda. Rapidamente me virei, tentando inutilmente esconder o livro às minhas costas. Pensei, em rápidos segundos, como ele respondera a uma pergunta que havia sido formulada em minha mente. - “Será que podia lê-la como eu estava para ler aquele livro em minhas mãos?” – me questionei novamente.
- “Sim, eu posso preceder o que pensas meu envergonhado filho, mas não pense que está apto a ler o volume que se encontra em suas mãos.” - ele respondeu. - “O que se encontra nestas páginas, por enquanto, está além de seu entendimento, e se quiser um dia abrí-lo deverá fazer por merecer, mediante estudo constante e dedicação”.
Após estas palavras, e pela expressão de seu olhar, eu percebi qual era o objetivo daquilo tudo. - ”Sim pai, eu me habilito a seguir seus caminhos, e não me contentarei em apenas criar algumas luzes brilhantes ou fogo ilusório nas mãos. Quero os maiores segredos que guardas!”- repliquei firmemente.
- “Parabéns meu filho, tomastes a decisão correta. Mas não penses que será fácil, pois um longo e árduo caminho deverás seguir. Agora, coloque de volta este livro onde encontrou e venha dar um forte abraço no seu velho pai”.
Depois de tantos anos de convivência era a primeira vez que eu o abraçava. Até hoje me lembro do aperto suave do corpo magro e esguio coberto por vestes largas, frio em razão das gotas que caíam lá fora.
- “Vá descansar meu filho. Amanhã, ao acordar, realize seus afazeres e então termine de limpar a biblioteca. A primeira regra de nossa lição foi aprendida hoje. Não lide com aquilo que não conhece, pois não será capaz de controlar”.
Após ouvir aquelas palavras um calafrio tomou meu corpo. Assim que o velho arcano deixou o recinto uma súbita chuva despencou do céu, e continuou a cair durante o resto da madrugada.
Choveu muito naquela noite, uma tempestade torrencial...



segunda-feira, 13 de julho de 2009

OS VIAJANTES SECRETOS PARTE III




Após deixarem o barco às pressas, fugindo dos marinheiros remanescentes, Serin e Lilnen caminharam enfrentando trevas, frio e neve sem rumo pela região costeira de Valsegaard. Ao encontrar um celeiro no meio do nada eles se recostaram para recobrar as energias, temendo que fossem encontrados. O primeiro dia nas terras geladas de Valsegaard se aproxima! Quais surpresas a jornada desse primeiro dia fora do navio lhes reserva?


OS VIAJANTES SECRETOS PARTE III


Serin abriu um dos olhos com dificuldade. Seu inconsciente pedia por mais algumas horas de descanso, mas ele sabia que corria perigo ali e, por isso, digladiou com o cansaço até conseguir levantar a parte superior do corpo. Após um longo bocejo e um esfregão nos olhos o iunar percebeu que o seu senso de tempo continuava apurado. A noite ainda não havia abandonado o ceú, e ele poderia deixar aquele lugar antes que alguém viesse averigüar os animais.

Lilnen dormia em um canto, respirando com uma suavidade bela e cativante. Ele nunca havia se interessado por humanas, mas ao observá-la via algo além de beleza, algo que o compelia a continuar fitando pela eternidade. A pele clara, os cabelos negros e brilhantes como o ceú das noites de inverno sulistas e os traços triangulares deixavam seus gestos ainda mais suaves. Serin a admirava, por ser tão frágil e inocente e em momento algum ter reclamado de tudo aquilo que estavam passando. No seu íntimo sentia que os infortúnios não parariam por ali. Seu sexto sentido poucas vezes falhara.

Uma pontada de dor na barriga o lembrou que não comia desde o início da noite anterior. Toda a comida que tinham guardado se molhara na água do mar. A fome poderia ser outro grande problema, e mesmo se alcançassem uma cidade que porventura estivesse por perto, a falta de dinheiro não permitiria que conseguissem alimento. Serin chamou a garota, murmurando o seu nome. Ela não demonstrava qualquer tipo de reação, mergulhada em um sono profundo, respirando suavemente com o rosto de lado e as mãos por debaixo do mesmo, apoiando-o.

Se voltando para o céu escuro lá fora, imaginou o que poderia fazer para conseguir dinheiro. As poucas moedas que tinha antes de entrar no barco foram perdidas de alguma maneira, e o que havia lhe sobrado eram roupas úmidas, seu punhal e um pingente que guardava com extremo zelo. Cercado de árvores e frio, Serin não conseguiu encontrar uma solução para o problema. Acostumado a ficar sempre cercado por pessoas e muitas edificações, nada lhe vinha à mente. Tornou a olhar para Lilnen lembrando que a noite já estava perto do fim, e deixou os pensamentos de lado para se ater à continuação da jornada.

Serin tocou o corpo da menina, forçando-a a acordar. Abrindo os olhos com dificuldade, sorriu quando viu o amigo olhando atentamente para seu rosto com dois pontos amarelos brilhando. -Já está na hora não é Serin? - questionou.

Apenas com um aceno da cabeça o iunar respondeu positivamente, e com um salto alcançou uma tora de madeira até, após outros dois, chegar ao teto. De lá de cima voltou o olhar novamente para Lilnen, que procurava suas roupas para ver se estavam secas. Contorcendo o corpo, passou através da entrada que era iluminada pela tocha com facilidade. Escalou até o telhado e olhou lá para fora como um grande felino sobre um monte, vigilante, constatando que havia nevado durante toda a madrugada em razão do fino tapete branco que cobria a relva ao redor. A noite ainda dominava o céu, e continuaria por cerca de uma hora. Tempo suficiente para que saíssem dali.

Serin pensou em levar um dos cavalos para ser vendido na cidade e conseguir uma boa soma de ýrgs, mas temia que o barulho provocado pelos animais acordasse os donos e os denunciasse. Além de tudo, não queria desagradar ou desapontar Lilnen, que possivelmente não concordaria com tal ato.

Por fim, decidiu então que seguiriam para o caminho do barco, onde provavelmente existiria uma estrada para a cidade na qual as cargas seriam depositadas. Voltou para dentro do estábulo com a mesma velocidade e parou, olhando para os cavalos enquanto sua mente indagava a respeito do plano que acabara de pensar. Como se conversasse consigo mesmo, Serin fez um sinal negativo meneando a cabeça a reprovar novamente sua idéia, e voltou o olhar para a amiga, que já havia se trocado.

- Vamos voltar pelo caminho que fizemos ontem, e aí encontramos uma estrada que leva pra alguma cidade. A maldita neve que caiu apagou os rastros dos marujos de ontem à noite. Que Lithlen nos guie pelo caminho certo. - disse Serin com um olhar severo e irritado por não conseguir uma solução imediata para os problemas que os rodeavam. - Vamos logo! - ele exclamou.

– Lithlen nos guiará. Ela sempre o faz com seus escolhidos, e acredito que estamos entre eles.

Assim, eles saíram do estábulo ainda durante a noite, deixando as marcas de suas presenças na neve que dominara todo o chão. Serin voltou pelo mesmo lugar, como se conhecesse cada árvore dali há muitos anos. Quando o sol apontou no horizonte disparando feixes de luz nas trevas Lilnen pôde enxergar, finalmente, como era aquela terra tão distante. Valsegaard, pelo menos naquela região, guardava uma certa semelhança com as florestas de Melnor ao sul, de onde ela havia tomado o navio. No entanto, o ar e o frio dali eram diferentes, mais cortantes e gelados do que qualquer outro que já havia sentido.

Durante alguns minutos caminharam até alcançar a costa, no exato local em que o navio havia ancorado. Na noite anterior este mesmo caminho parecia ser muito mais longo, quando Lilnen não conseguia sequer ver o que estava à sua frente. O navio já não estava mais ali, e somente restos de madeira quebrada e tochas queimadas haviam ficado pra trás. Uma falha entre as árvores indicava a Serin que por debaixo daquela neve havia uma estrada, provavelmente utilizada com uma boa freqüência. Ele não dizia nada, e Lilnen apenas acompanhava, olhando ao redor. Sons de pássaros muito tímidos e o farfalhar das copas de árvore nas proximidades eram as únicas companhias dos dois viajantes.

Após seguir este caminho entre as árvores avistaram ao longe uma fumaça escura se misturando ao azul límpido do céu, que neste momento já estava totalmente claro. O sol reluzia no horizonte como uma vela dentro de um quarto preenchido pela claridade do dia, opaco e sem vida. Para o povo de Valsegaard o sol desta maneira era bastante reconfortante, pois em poucos momentos do ano isto ocorria. Para Lilnen, acostumada com os campos ensolarados de Lynph, esse acanhamento da estrela maior deixava o dia triste, convidativo para que permanecesse em casa bebendo chá quente enquanto lia histórias. Contudo, naquele momento a última coisa que ela poderia fazer era voltar para casa, muito menos para ler ou tomar chá.

Ambos seguiram a direção da fumaça, que vinha de um aglomerado de edificações a poucos metros de onde estavam. - Um vilarejo. - Serin disse tentando enxergar ao longe.

Lilnen também olhou para a direção do vilarejo, sentindo-se ao mesmo tempo tranqüila e preocupada, pois finalmente poderia descansar de verdade. No entanto, por outro lado, estava se dirigindo para uma grande aglomeração de pessoas, o que facilitaria o aparecimento dos sujeitos que a seguiam. - Não é possível que até aqui, nesta terra distante, os agentes de Siranan conseguirão me encontrar. Que Leuros proteja meus passos... nossos passos. - ela falou para si mesma enquanto continuava o caminho.

O vento soprava forte, zunindo entre as árvores ao redor e remexendo as folhas. A grama estava molhada e pintada de branco, pois alguns flocos da neve que caíra na madrugada ainda perduravam. Ainda não tinham alcançado o vilarejo, mas já de longe podiam ver as pessoas que o habitavam, de pele clara como a pura neve que caía dos ceús durante quase todos os dias do ano em Valsegaard. Se vestiam com roupas levemente diferentes, de aparência mais rústica e pesada, naturalmente devido ao clima.

Esta rusticidade também pôde ser percebida nas edificações, construídas com tijolos mal cortados e madeira, de telhados lisos e angulares, de uma maneira que não era encontrada em qualquer outra cidade ou vilarejo das terras ao sul. Lilnen pensou a princípio que toda aquela arquitetura rústica era devido ao fato do lugar ser apenas um vilarejo, mas no futuro descobriria que Valsegaard como um todo tinha esta característica tão peculiar.

- O que vamos fazer Serin? Não temos moeda alguma, e pelo que ouvi falar, as daqui são diferentes dos ýrgs que usamos no sul. - questionou a garota. Serin baixou a cabeça pensando, mas nada além de tentar adquirir as coisas à sua maneira, como fazia em Gelendral, lhe vinha à mente.

- Vamos andar por aí e conhecer o lugar. Quem sabe conseguimos achar alguma coisa útil? - o iunar respondeu, olhando ao redor para encontrar uma vítima. - Estas pessoas são tão maltrapilhas quanto os mendigos de Gelendral. Eu é que vou acabar sendo roubado aqui se não ficar com os olhos abertos. – ele por fim pensou ao observar as pessoas que iam e vinham do vilarejo.

Realmente, para alguém como ele, os habitantes de Valsegaard se assemelhariam a pessoas à beira da miséria, pois suas roupas geralmente eram cortadas de qualquer maneira e confeccionadas com tecidos rústicos como peles de animais, ideais para proteger do frio.

A estrada terminava na entrada do vilarejo, onde estava afixada uma placa de madeira escura e velha, com a seguinte palavra entalhada na mesma:



- Deve ser o nome desse lugar. - Serin pensou...


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quinta-feira, 25 de junho de 2009

OS VIAJANTES SECRETOS PARTE II



Continuemos com as aventuras de Lilnen e Serin em Valsegaard. No último post vimos que ambos tentavam deixar o navio, mas encontraram um pequeno problema na sala de cargas. Um marujo de súbito chegou para averigüar o que havia ocorrido com os barris após a tempestade e Serin resolveu tentar desacordá-lo, atacando furtivamente com um pedaço de madeira. No entanto, ao se aproximar, o iunar teve uma desagradável surpresa. O marujo se virou, por sorte, percebendo a sua presença...


OS VIAJANTES SECRETOS PARTE II


Contudo, já era tarde, e assim que uma expressão de surpresa se formou na face do marujo, foi logo desfacelada por um golpe com a tira de madeira, que provocou um som de algo se partindo. Cambaleando para trás ele dava sinais de que iria cair, provavelmente desacordado, mas retomou o equilíbrio e se voltou contra seu agressor, proferindo injúrias e tentando agarrá-lo pelo pescoço. Serin pensou rápido e sacou com uma destreza assustadora seu punhal, golpeando o pescoço do robusto sujeito quando suas mãos calejadas estavam por tocá-lo. Com um gemido discreto ele caiu no chão, e tão rapidamente quanto o golpe que dera cabo do moribundo Serin pegou sua arma e voltou o olhar para a porta.

Lilnen não pôde ver o que aconteceu com exatidão, mas após uma olhadela mais forçada exprimiu felicidade ao ver o amigo são e salvo. Escondendo a faca novamente na cintura ele olhou para o corredor, e tomando a menina pelo braço correu para a janela através da qual fugiriam, como planejado.



As terras de Valsegaard no período de inverno, que é sempre rigoroso


A janela era redonda e grande o suficiente para que passassem, e estava bem próxima da água. Dela eles avistavam as trevas contornadas por estrelas, em um céu diferente daquele com o qual estavam acostumados. Lúnarin, a imensa lua que reinava no firmamento dos descampados do sul, não os presenteara naquela noite com seu brilho fosco. Serin abriu a janela com cautela e olhou para a água do mar hesitante, refletindo acerca de sua temperatura, que parecia estar bem baixa a julgar pelos flocos brancos que voavam aleatoriamente pelo ar. Lilnen olhava aflita para ambos os lados do corredor repetidamente, enquanto esperava uma atitude do amigo.

Esta veio logo. Quando passos foram ouvidos ao longe ele agarrou com firmeza o braço da menina e se jogou na água. O barulho provocado foi ouvido no convés, e logo inúmeros tripulantes se debruçaram nos parapeitos tentando inutilmente enxergar o que havia caído no negrume que rodeava a caravela. Era uma escuridão tão densa que nem mesmo os brilhantes olhos de Serin puderam ser vistos contrastando com a mesma. Ao colocar a cabeça para fora da água viu claramente o que estava ao seu redor. Não estava fria como temia, mas se permanecessem ali por mais tempo seus músculos já retesados pela temperatura diminuta sofreriam mais. Ambos nadaram até a costa com facilidade, em razão da profundidade que permitia que os pés tocassem o fundo. O iunar a todo custo visava se afastar do navio, nadando na diagonal, pois logo o cadáver que deixara na sala de cargas seria encontrado.

Ao saírem da água caminharam para a direção oposta do barco, confiando na visão apurada dos iunars que permitia que, mesmo naquela escuridão, tudo pudesse ser discernido com clareza. Uma algazarra começou no convés, e marujos começaram a correr para lá e para cá, de armas em punho. Lilnen conseguiu ver tal cena, já que a região do atracamento estava iluminada. Todavia, era incapaz de enxergar um graveto à sua frente naquela penumbra, e por isso foi guiada pelo novo amigo, agarrando-lhe o braço esquerdo. Somente olhos amarelos flutuando em uma mortalha de trevas eram tudo o que avistava naquele momento, como duas velas de chamas fátuas reluzindo em um quarto escuro.

Após andarem algumas centenas de metros se afastando da área de descarregamento do navio se recostaram em uma árvore, ofegantes e com as roupas completamente molhadas. O frio começava a incomodar, e Lilnen comprovava este fato ao tremer incessantemente, rangendo os dentes e se encolhendo contra si mesma tentando aliviar a sensação ruim.

Serin retirou a parte de cima da roupa e chacoalhou seu fino pêlo cinzento, retirando o excesso de água que sobre o mesmo jazia. Ele olhava para a garota, que sofria com o frio e não sabia o que estava ao seu redor, se perguntando por quais circunstâncias estava ali a amparando, quando poderia simplesmente ter subido furtivamente até o convés e pulado para o solo para ganhar a nova terra.

Estes pensamentos foram interrompidos quando Lilnen chamou pelo seu nome: - Serin, o que aconteceu na sala de cargas? Eu fiquei com medo de algo ruim lhe acontecer.

- Nada demais. Eu simplesmente bati com o toco de madeira na cabeça daquele sujeito e o coloquei para dormir. Ele já deve estar acordando agora, me amaldiçoando pela dor de cabeça. Por falar nisso, nós devemos sair daqui o quanto antes, pois os marujos podem tentar nos procurar. – ele respondeu com uma expressão de espanto.

Com sua pata peluda ele pegou a mão da garota e a ajudou a levantar. Firmando os olhos tentava enxergar ao longe qualquer tipo de iluminação, que indicaria um lugar onde poderiam escapar do frio. A mochila da menina a tiracolo estava completamente molhada, e provavelmente a comida lá dentro se perderia. Um lugar aquecido e roupas secas eram essenciais naquele momento, pois a temperatura seria impiedosa e uma doença ou debilidade os atrapalharia largamente no restante da viagem.

- Que maldição de lugar frio! – Serin resmungava a cada passo. - Por qual riqueza interminável alguém viria para um lugar tão amaldiçoado como este?

Enquanto caminhavam os resmungos continuavam, todavia, sem perder de vista os arredores na tentativa de encontrar uma trilha ou iluminação longínqua que indicaria a proximidade de uma cidade ou vila. Lilnen permanecia em silêncio e mergulhada em pensamentos, tentando vencer o frio e o incômodo que as roupas molhadas proporcionavam.

Bem ao longe avistaram uma luz fraca, que poderia significar o fim daquele martírio. Enquanto se aproximavam a imagem de um casebre de madeira e pedra, ao lado de um pequeno curral e de um suposto estábulo, se formava. Uma tocha iluminava a edificação menor, e ao que parecia quem quer que morasse ali já estava a dormir, pois as luzes do maior estavam apagadas. O silêncio pairava nesta área, quebrado apenas pelo cantar do vento que assobiava vez ou outra por entre as árvores formando um réquiem lutuoso de quietude.

Um longo uivo quebrou o silêncio entre os dois viajantes. Um uivo que foi capaz de fazer o iunar arregalar os olhos enquanto olhava para todas as direções possíveis. Lilnen o observava, apreendendo uma nobreza que somente alguém com a sua sensibilidade inocente conseguiria. Aqueles da raça de Serin não eram bem vistos nas terras do continente, sempre associados com covardia e traição. Uma má reputação que os precedia. Contudo, por engano ele estava ali, em terras estranhas e, pelo jeito, hostis, acompanhando-a a cada passo sem pestanejar. Ela percebeu que, apesar de estar sempre à margem da sociedade, vivendo de golpes e possivelmente furtos, ele tinha algo de altivo no seu interior, fator que provavelmente o compelia a ajudá-la. Serin, por outro lado, indagava em seu íntimo o motivo de estar fazendo aquilo, mas não conseguia encontrar repostas e simplesmente o que lhe vinha à cabeça era uma vontade incontrolável de acompanhar sua nova amiga e ver como toda aquela história terminaria.

- Inferno... será que até aqui estes roedores de ossos vão me importunar? – Serin proferiu, desviando o olhar da menina que havia ancorado no seu semblante assustado. Ele se referia a rullnargs, hákans como ele, mas que advinham dos lobos que habitavam os campos centrais de Rháurian. Desde a infância os temia e evitava em razão de algum trauma que não gostava de comentar, e ali não seria diferente.

Apesar de não vislumbrar momentaneamente contra o que o iunar praguejava, Lilnen percebeu como ficou assustado e colocou a mão gelada sobre seu ombro, se esforçando para que o vento frio não penetrasse as vestes pela manga. - São apenas lobos Serin, lobos uivando para espantar o frio. Vamos nos abrigar logo, antes que tenhamos que uivar também. – ela disse, e seu toque doce e as palavras de conforto o acalmaram de uma maneira assombrosa, como se com apenas um leve golpe tivesse espantado todos os uivadores dos arredores.

- Sim, vamos logo. Acho que se abrigarmos neste casebre poderemos sair pela manhã sem nos encontrarem. As roupas na sua mochila devem estar menos molhadas. Você pode vestí-las enquanto estas aí se secam. Grrrrr... que frio maldito... - Serin disse observando a choupana que aparentava ser um estábulo. Seus olhos eram rápidos e atentos, e desde o primeiro encontro Lilnen percebeu que ele nunca a fitava enquanto dizia algo. Ela se sentia mais segura assim, pois sabia que o iunar estaria sempre de prontidão na iminência de qualquer perigo.

A porta do estábulo fez um barulho baixo ao ser aberta, suas dobradiças trincavam com o frio e a madeira estava gelada ao toque. A tocha colocada na parte de fora iluminava o interior com uma luz fraca através de uma passagem pequena, que não havia sido notada por Serin. Além da luz, o vento congelante de Valsegaard também penetrava o estábulo. - Parece que há cavalos aqui Lilnen. – ele murmurou tentando esconder a voz estridente. – Vamos ficar por aqui para nos esconder dos rulln... do frio.

Três cavalos estavam deitados e amarrados em um anteparo de madeiras grossas, como ele pôde perceber quando sua visão se adaptou ao ambiente. O cheiro de esterco entrava nas narinas dos viajantes, misturado com o ar frio que ousava invadir pela passagem.

- Aqui está mais quente e mais claro. Acho que não precisamos mais procurar um lugar para dormir. Você não acha que deveríamos acordar quem quer que more aqui e pedir ajuda? Talvez dê para conseguir algo até melhor, como roupas secas e uma cama quente. - disse a garota enquanto se abraçava tentando apartar a trepidação do próprio corpo.

- Sim! Podemos conseguir também uma porta na face e nem mesmo esse feno sujo para dormir. Ou pior, podemos até ganhar uma escolta de volta para o navio e descobrirem a respeito do que fizemos com o marinheiro. Eu não quero ser mor... - Serin parou, segurando a língua para não falar o que não devia. Ela não merecia ouvir tal blasfêmia. - Eu não quero limpar o convés para pagar a viagem que fizemos escondidos. Vamos ficar por aqui e pronto. Eu sei o que faço, vivi nas ruas e sei como as pessoas nos tratam. - ele concluiu com mais calma.

Assim, ambos se acomodaram no feno que estava espalhado pelo chão. Os cavalos emitiam sons reagindo à presença dos novos companheiros, mas eram baixos e não chegariam à outra casa. Serin estava bastante fatigado e por isso dormiu antes do que a menina, entregando a sua percepção ávida ao toque reconfortante do sono. Uma das grossas vigas de sustentação do teto foi sua cama, bem longe do chão, como de costume.

Ela, por outro lado, tirou as roupas que a incomodavam tanto e se enrolou em um cobertor velho que repousava estendido em um dos anteparos. Uma lona grossa que exalava um odor indicador de utilização sobre os animais. Apenas uma malha leve a separava do contato com o pano, enquanto as roupas molhadas secavam penduradas em um gancho. A friagem causava apenas um leve desconforto, que chegava até mesmo a provocar calafrios seguidos de uma estranha sensação de prazer, fazendo-a apertar ainda mais o corpo contra si mesma.

Nenhum uivo foi ouvido durante todo o restante da noite, e o gelendrariano não soube distingüir se aquilo era bom ou ruim. Os lobos poderiam ter sido afugentados para longe dali... ou estavam muito próximos e silenciosamente furtivos...